ESPAÇO DE CULTURA

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sexta-feira, 21 de setembro de 2018

1ºLUGAR  CONTOS - "ESCOMBROS"  (Marlene Lima)

         Em vez do sutiã preto de Alice,a peça grená surgiu do caos.Usada só naquele dia,a calcinha permaneceu no mais escondido,no mais secreto,da gaveta.Não consegui evitar aquela mexida ,no passado.Lucas sentado na cama da pequena suite,com o braço em torno de mim.
         O rosto dele roça a renda. Diz não acreditar que aquele momento esteja acontecendo.Minutos
ou segundos? Uma só escultura no espelho. Nossa juventude com o gosto do proibido -- quem vai contar o tempo?



          Alice insistia da sala:"Comequié,mãe,achou o sutiã sem alças? Quero ir com o vestido tomara que caia"
          Dessa vez,não respondi.Um filme,em sépia,passava, ali,no centro da desordem:1971 quase no fim. A conversa difícil  será quando Greg voltar de São Paulo,onde faz mestrado em Administração.
Tudo será dito no sábado à noite.Prometi a Lucas.
          Separações sempre serão complicadas.Se partem da mulher,então...O homem,rejeitado,não se conforma.Na vez dele é simples:faz a mala e cai fora.Eu tenho,ainda,de contar para a família.Mamãe já sabe.Pretendo morar com eles até assumir a união com o Lucas,ao arrepio das leis,como vai dizer meu pai,advogado.



          Dezembro de 1992.Gregório quis que fôssemos para o novo apartamento,logo que recebeu as chaves.Meu marido tomava decisões radicais,muitas vezes de roldão,que resultavam em tumulto, como aquela mudança do Grajaú pra Botafogo,sem qualquer planejamento.
          Na nova casa,a gente se mexia nos espaços atravancados de caixas e móveis,tentando achar o que era mais imediato,como utensílios de copa e cozinha.O que podia ser uma questão de ponto de vista:minha filha priorizava o sutiã sem alças.
           "Mãe,olha nas outras gavetas.O pai espalhou elas,aí,de qualquer jeito."
           "Que merda,Alice!Essa festa,logo no dia da mudança!"
           Greg chegou cansado e feliz.,com duas pizzas,refrigerantes e vinho.
           "Diva,largue essas gavetas e venha comer!",berrou,da cozinha.
           " Não sei se vou achar,menina,Por que não vai com o vestido branquinho,do seu aniversário?"
           "Eu hein,mãe!Quem tá fazendo quinze anos é a Bruna.Quero ir com o tomara que caia, vermelho, já avisei.Já tenho dezesseis,ora."
             De novo,eu voltei no tempo.



            Na tarde longínqua,somente três tempos de aula no Colégio Santa Margarida,em Vila Isabel.
Lucas ensina inglês.Eu,química.Não podemos sair juntos do colégio.Espero o fiscão azul na praça Saens Peña.Estou de calça Saint-Tropez e collant preto;ele,de calça Lee.A abertura da camisa esporte deixa ver o cordão de ouro com a medalha de São Jorge."Você acredita no santo,de verdade?"--Acaricio o dragão."É um presente da minha mãe.O santo me concede uma graça vez em quando. Exemplo,hoje." Ri,malicioso.Tira,do volante,a mão de giz e pousa sobre a minha,abandonada na pasta dos exercícios para corrigir."Não se preocupe,Diva.Já nos policiamos durante tanto tempo,não acha?" O clima rola,faz bem um ano.Um comentário sem importância,mas fico séria.O que está pra acontecer me deixa tensa.
            A  Barra da Tijuca é um bairro afastado.Mata e praia.Mas,os motéis,já proliferam.
            Certa de não estar sendo observada,não seguro o riso.

            Debaixo do chuveiro,o relógio esquecido no braço -- droga,não é à prova d'água.Enxugo-o, ao sair do box,na manga do roupão branco,que abandona sua impessoalidade para abrigar meu embaraço: eu,igual a qualquer outra,capaz de trair e buscar,no clandestino,uma espécie rara de felicidade.Por que tenho de pensar nisso,agora? O homem desejado,do outro lado da porta."Um salto no escuro" não é só um clichê.
           Da rádio FM flui,baixinho,uma canção italiana.O ar-condicionado espalha a lavanda. Afugento a culpa que se insinua e a paixão me absolve.
           Muitos outros encontros e o sentimento ganha corpo.Ainda não tenho filho.Lucas desquitado.
Minha hesitação o faz se queixar,com frequência."É ridículo,Diva.Século XVI.Só falta um balcão, onde você vai me esperar com uma trança loura.Não pense que o pessoal está boiando nessa história. Você,casada.Sabe que podemos ser demitidos?" Os beijos interrompem papos mais sérios,no Cavaco, nosso barzinho.



            Aquele sábado,de novembro,jamais será esquecido.Passará a fazer parte da história da cidade.E da minha história.Vejo a notícia, em branco e preto,no jornal,da televisão.Um trecho do Elevado Paulo de Frontin ruiu sobre carros e ônibus.Ainda não há lista de mortos.Durante todo o dia,
e noite,as imagens se sucedem.Levarão vários dias.



            Greg passeia ,de vez em quando,pela cozinha e reabastece o copo.Diminui o som do noticiário.O distanciamento nos torna indiferentes ,mesmo em presença do trágico.A dor não é nossa.
Por isso é possível,diante da cena muda,despejar a verdade.
             E,enquanto eu cato as palavras certas(como se existissem palavras certas na hora de por a pique um casamento),talvez Lucas esteja sendo retirado dos destroços,bem ao alcance dos meus olhos.
             No meio da poeira densa,os bombeiros transferem feridos e mortos para o interior das ambulâncias e rabecões.Policiais afastam repórteres e curiosos.Médici,Chagas Freitas e Dom Eugênio Salese outras excelências dizem alguma coisa. Chagas chora.
             O professor de inglês não compareceria ao Colégio Santa Margarida,na segunda-feira.Mora na Lagoa e saiu,de carro,sábado,às dez horas,mais ou menos-- informa o porteiro do edifício.Sei que
ele dá aulas,excepcionalmente nesses dias,num cursinho pré-vestibular,na Tijuca.
             Não compareço ao enterro,nem às homenagens.



             Depois de tantos anos,ela estava nova,quase sem uso.Mas eu,não.Eu amadureci,Melhor descartá-la.Talvez nem me coubesse mais.Não queria manter uma relíquia.Ou um ponto de dor.Bem, não precisava ser agora.Larguei a calcinha de renda no meio das outras roupas.Me recompus.



            Meu marido não foi embora.Esperava,creio,um pedido de clemência que jamais viria.Uma palavra que o colocasse num lugar diferenciado na escala dos traídos.Afundada no meu luto,pouco me importava sua aparente magnanimidade.Livrou-se ,do rival,sem dar um tiro.E decidiu,por conta própria,passar uma apagador,no passado.Isso me enfurecia,no íntimo.Era como se Greg fosse o culpado.Fosse o caminhão -betoneira com oito toneladas,de concreto,que derrubou o Paulo de Frontin, na encruzilhada.


            Enfim,numa caixa de travesseiros,puxei ,pelo bojo, o sutiã sem alças.
 

Um comentário:

  1. Adorei o conto! Que história bacana e bem escrita! Parabéns, Marlene! 👏👏

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